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Meio Ambiente

O clima dos debates

publicado: 23/07/2019 09h20, última modificação: 23/07/2019 10h44
Irving Foster Brown é professor da Ufac com doutorado pelo Department of Geological Sciences - Northwestern University
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Existem dias quando é melhor não sair da cama.  Um dia daqueles aconteceu na semana passada quando recebi três artigos contraditórios via a Internet.  O primeiro disse que o efeito humano no clima é uma farsa e estamos entrando num período de resfriamento global. O segundo acha que pode ter efeito humano no clima, mas o custo de fazer algo é maior do que os danos. Finalmente li um artigo avaliando se as mudanças climáticas vão causar a extinção da raça humana ou somente a morte de centenas de milhões de pessoas.  

A combinação dos três deu uma dor de cabeça chamada “dissonância cognitiva”, ou seja, ter ideias incompatíveis na mesma cabeça – onde a influência humana no clima é “uma farsa” de um extremo para o outro extremo de “a causa da extinção da raça humana”.  A ciência anda para frente com o acúmulo de evidências que permite testes de teorias e afirmações. Muitas teorias não resistem a estes testes e são descartadas.  Podemos usar esta técnica para avaliar as afirmações destes três artigos.    

A influência humana no clima é uma farsa e estamos entrando numa fase fria? Afinal no último milhão de anos a Terra entrou e saiu de vários ciclos de glaciação por causa de mudanças na posição da Terra em relação ao Sol, então vale a pena pensar na possibilidade.   

Existem vários bancos de dados e observações para testar se o planeta está resfriando ou esquentando. Por exemplo, medidas de temperatura em várias partes do mundo foram analisadas por diversos grupos de cientistas, entre eles ingleses, americanos e japoneses.  Eles chegaram à conclusão de que a temperatura média da Terra está aumentando, especialmente desde da década de 70.   Um grupo de físicos da Universidade de Berkeley criticou estas análises e fez um estudo com até mais dados, mas chegou a mesma conclusão.  

Mas será que estes milhares de cientistas de diversos países criaram e manipularam os dados e/ou as estações meteorológicas foram afetadas em centros urbanos com o seu crescimento, virando ilhas de calor? Parece pouco provável, mas podemos checar a conclusão de aquecimento com uma outra fonte de dados de temperatura: satélites que podem estimar a temperatura de camadas da atmosfera. Quatro análises destes satélites foram feitas recentemente, inclusive uma de um grupo que acha que a influência humana é mínima, e todos observaram um aumento de temperatura na região tropical entre +0.08 a +0.17 graus C por década, verificando a tendência observada de temperaturas medidas em estações meteorológicas. 

Se não foram suficientes as medidas de temperatura nas estações meteorológicas e via satélites para confirmar o aquecimento global, temos medidas feitas por um outro grupo de milhares de cientistas – oceanógrafos que observam o calor acumulado nos oceanos.  O planeta Terra teria tido um outro nome – planeta Água - se alguém pudesse ter visto o planeta de fora.  Afinal, os oceanos cobrem quase três-quartos do planeta e os oceanos absorvem mais de 90 por cento do aumento da energia termal.  A taxa de acúmulo de calor nos oceanos tem acelerado nas últimas décadas .  

Um quarto grupo de observadores são pessoas do campo nesta parte de Amazônia.  Muitos acreanos lembram de friagens de décadas passadas que duravam bem mais do que atualmente.  Outros reclamam que não podem trabalhar mais no campo depois de meio dia por causa do aumento de temperatura. Claro que estas observações são subjetivas e limitadas em tempo, mas já ouvi comentários de grupos indígenas, seringueiros e produtores rurais em diversas localidades desde 2000, todos dizendo a mesma coisa.   

Tomara que este processo se reverta para termos um leve resfriamento, mas a tendência é ao contrário.  Estamos no caminho oposto do que se propõe o primeiro artigo.  Farsa, não. Algo está acontecendo com o clima e no momento a melhor explicação, segundo todas as grandes academias nacionais de ciência, inclusive a do Brasil, e todas as maiores associações de meteorologistas, é que a influência humana é a causa.         

O segundo artigo critica o pânico associado a algumas projeções de clima.  Este segundo artigo faz uma análise tipo custo/benefício para dizer: fique calmo, a cura pode custar mais do que a doença.  Vamos olhar agora os custos dos eventos extremos recentes para ver quanto investir na cura.  

A Sociedade Americana de Meteorologia, uma das maiores associações de meteorologistas do mundo com 13,000 membros, tem publicado anualmente desde 2012 artigos científicos investigando os eventos extremos climáticos durante o ano anterior para determinar as causas. Cerca de dois-terços dos eventos tiveram um impacto perceptível da influência humana e em 2016, pela primeira vez, três eventos só aconteceram por causa de mudança climática influenciada por atividade humana. Já temos indicações que dezenas de eventos extremos influenciados por atividades humanas estão afetando sociedades no mundo inteiro  .

Os meteorologistas estão dizendo que o problema já existe no nível global e está piorando. As estimativas de danos tem falhas; o economista Nicholas Stern disse que os modelos para estimar os custos destes eventos têm omissões graves.  Então, sem olhar para futuro já temos impactos crescentes na economia pela influência humana nestes eventos.    

Vamos para o caso do Acre. Moro aqui desde 1992 e já observei mudanças. As piores secas (2005, 2010 e 2016) aconteceram nos últimos 15 anos.  Cada seca afetou uma área maior do que a que antecedeu . Uma equipe de pesquisadores disse que só pode explicar a intensidade da última seca por causa de mudanças devidas à influência humana.  No caso da seca de 2010 no Acre os danos associados somente com os incêndios foram cerca de 900 milhões de reais.  E em 2016 o sistema de abastecimento de água em Rio Branco quase entrou em colapso, quando o nível do rio Acre chegou a cota de 1,3 metros. 

As inundações recentes no Acre seguem o mesmo padrão de alta frequência e intensidade das secas. A pior inundação em décadas do Rio Madeira em Rondônia reduziu transporte rodoviário do sul do Brasil até 90% durante dois meses em 2014.  O resultado foi cerca de 800 milhões de reais não circulando na economia acreana.  Em 2015 a inundação em Rio Branco afetou mais de cem mil pessoas com danos e custos estimados entre 200 a 600 milhões de reais.  

No estado do Acre as várias inundações em 2015 causaram uma redução no PIB estadual de 16%, segundo o Professor Rubicleis da Silva da Ufac. Para um estado com PIB de quase 14 bilhões de reais em 2016, estes danos são significativos. Desde 2010 inundações em Rio Branco causaram quatro situações de emergência (2010, 2011, 2013 e 2014) e dois estados de calamidade (2012 e 2015).   Cada situação de emergência destas tem custos que se medem em dezenas de milhões de reais, no mínimo.   

Nesta década, os danos cumulativos de secas e inundações só no Acre envolvem centenas de milhões de reais.   Muitas vezes os danos não são quantificados, mas são reais e representam um ‘empobrecimento silencioso’ que está acontecendo. Não é para entrar em pânico, mas este empobrecimento de centenas de milhões de reais merece muito mais atenção da sociedade, especialmente porque os eventos estão aumentando em intensidade e frequência. 

A continuação desta tendência nas próximas décadas, sim, poderia levar a danos sérios na economia que daria saudades da recessão econômica que temos hoje.  Talvez um pouco de pânico possa focalizar a discussão sobre como lidar com este ‘roubo’ de riquezas do Acre que eventos climáticos extremos estão fazendo.         

Agora o terceiro artigo discutiu se a mudança no clima vai provocar a extinção da raça humana ou somente a morte de centenas de milhões de pessoas.  Em termos de extinção, parece que seria muito difícil, sobrevivemos como Homo sapiens a última glaciação sem grandes problemas.   

A civilização humana, porém, poderá sofrer retrocessos.  A probabilidade não é pequena, mas não só por causa de mudanças no clima. O historiador Yuval Harari notou que temos a confluência de vários fatores – potencial de guerras nucleares, biológicas e cibernéticas, a revolução de inteligência artificial que pode levar a maioria de pessoas a desemprego e o colapso da biosfera. 

Agora voltando a mudanças no clima, o acúmulo de CO2, o gás de efeito estufa, na atmosfera está acelerando.  Na década de setenta, o acúmulo foi 1,3 ppm CO2 por ano.  Desde 2011, a taxa média é 2,4 ppm CO2 por ano, 80 porcento mais alto do que a da década de setenta. Se continuar esta tendência, chegaremos a mais de 600 ppm na atmosfera no ano 2100.  A última vez que a Terra teve esta concentração de CO2 foi cerca de 10 milhões anos atrás no Mioceno.  Pode ser que nossos netos vão gostar do clima do Mioceno, mas a mudança do clima atual vai ser muito dolorosa com danos sérios a agricultura e infraestrutura, no mínimo.  E o clima vai continuar mudando durante séculos.     

Em suma, é pouco provável que a influência humana no clima é uma farsa ou vai levar a extinção humana, mas já está fazendo estragos no mundo.  O pânico só ajuda se for controlado, mas no momento estamos fazendo muito pouco e não estamos reagindo a altura dos danos que já aconteceram no Acre na última década. 

Precisamos pensar em como reduzir os danos que os eventos extremos causam.  Espero que os autores dos três artigos possam pelo menos concordar com isso. Afinal todos nós vivemos no mesmo planeta.        

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Foster Brown é pesquisador do Centro de Pesquisa de Woods Hole, Docente da Pós-Graduação e Pesquisador do Parque Zoobotânico da Universidade Federal do Acre.  Coordenador do Projeto MAP-Resiliência.