Notícias

Economia Política e Cidadania

A Universidade na (pós)encruzilhada

publicado: 23/07/2019 09h05, última modificação: 30/07/2019 09h07
José Porfiro da Silva é professor associado da UFAC e doutor pelo Instituto de Economia da UFRJ
porfirocerto.jpg

Em junho de 2018, foi realizada a terceira Conferência Regional de Educação Superior, na cidade de Córdoba, na Argentina — não confundir com a impressionante Córdoba da província espanhola de Andaluzia. 

A conferência aconteceu sob o simbolismo dos 100 anos da “reforma de Córdoba”, expresso no “Manifesto de 21 de abril de 1918”. No final, foi publicada uma bela declaração, daquelas que muitos gostam de ler.

No entanto, por ironia dos nossos tempos, os dirigentes das instituições e organizações da educação superior latino-americanas, e caribenhas, não conseguiram alcançar um consenso sobre qual concepção de universidade poderia ser levada à Conferência Mundial da UNESCO sobre Educação Superior que seria realizada agora em 2019, em Paris. 

Sobraram das reminiscências do Manifesto de Córdoba (1918) apenas muitos textos (muitos), livros, e, dezenas de vídeos com palestras, debates, etc. Sendo saudosista, mesmo muito polêmica, a “Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI: Visão e Ação”, produzida na Conferência Mundial de 1998, da UNESCO, deixa saudades.

O dissenso sobre uma concepção de universidade entre os dirigentes reflete a hegemonia de um projeto universitário desenvolvido nos últimos quarenta anos, com múltiplas denominações; universidade corporativa..., etc. Um projeto que se construiu, nesse período, na esteira das mudanças da lógica e da maneira de pensar a respeito do conhecimento na universidade.

Este projeto universitário é distinto, em grande parte, da ideia de universidade propagada nos últimos duzentos e cinquenta anos, muito vinculada ao alemão Humboldt, criador da universidade de Berlim (1810), e, provocador e catalisador da ideia de universidade a partir do princípio da não separação das atividades de ensino, pesquisa e extensão. Não cabe aqui comentários sobre como as universidade se desenvolveram nos principais centros mundiais, como o modelo napoleônico, essencialmente voltado para a formação profissional, ou o próprio modelo alemão centrado, basicamente, na pesquisa.

De uma perspectiva mais geral, este modelo histórico, associado ao ideário humboldtiano, associa-se com o significado de uma universidade pública e, também, de uma universidade social; claro, que nessa clivagem pode caber diferentes entendimentos. Mas, aqui, usarei, basicamente para fazer o contraste com o modelo hegemônico de universidade da chamada era da sociedade do conhecimento.

 O “modelo antigo”, humboldtiano, foi penetrado pela perceção de que as demandas diretas da sociedade (econômico-políticas e sócio-políticas) deveriam orientar, na contemporaneidade, as diretrizes e estratégias acadêmicas no interior das universidades, o que implicaria uma nova lógica e dinâmica de produção do conhecimento dentro das universidades.

Essa nova lógica e dinâmica está sintetizada numa imensa biblioteca, impossível de enumerar uma lista de livros, mas, que em termos analíticos, gravitam sobre os conceitos de hélice tríplice e do modelo 2 de produção do conhecimento, desenvolvidos nas indicações,* ou no meu livro.

Eu coloquei o título destes comentários de “A Universidade na (Pós)Encruzilhada” para deixar explícito que o modelo hoje hegemônico cruzou com o “modelo antigo” há algumas décadas, deixando este numa condição de extrema debilidade no interior das universidades, tantos nas centrais quanto nas periféricas, como a UFAC. Até seria favorável se ainda estivéssemos num momento de encruzilhada, o que faria com que os conflitos ainda fossem posicionados de outro modo, com menos desvantagens para quem atua em espaços tão fora do eixo central do país.

Esse modelo de universidade corporativa foi internalizado amplamente em todas as dimensões universitárias, por intermédio de diversas cunhas: (i) questionamento do modelos decisórios das universitárias “tradicionais”; (ii) noção utilitarista exacerbada das universidades no campo da competitividade das economias de cada país; (iii) concorrência letal entre universidades e intra universidades (disputas internas generalizadas entre docentes, entre alunos, entre docentes e alunos, etc.); (iv) “desprestigiamento” insâno do ensino, dando-lhe um papel meramente secundário; e, (v) marketização de universidades e de docentes e de discentes, cada qual projetando sua imagem positiva de “produtividades” perante seus parceiros (exibindo-se como empreendedores acadêmicos vencedores). 

 Chego até a concordar com parte dos argumentos de  Stephen Ball, quando procura demonstrar que a totalidade das mentes no interior das universidades, sem exceção, está imbricada com o modus operandi da lógica neoliberal vigente no mundo; não percebo nenhum exagero nesta forma de análise. Um pouco parecido, Ian Angus, em seu livro "Amar las preguntas", segue o entendimento de que a universidade está em crise, em função de estar vendo aquele outrora significado de universidade pública e social se desvanecer por entre os dedos.

A propósito, assistindo agora (on line) a posse da nova reitora da UFRJ (08-07-19), uma universidade na qual passei quatro anos dentro de seu ambiente acadêmico, veio-me, de pronto, a lembrança da coluna de ontem de Elio Gaspari (O Globo e Folha de São Paulo) descrevendo o desenho de uma licitação, envolvendo o BNDES e o banco Fator, para cessão de milhares de metros quadrados de seu espaço, para abrigar uma variedade de empreendimentos; apenas possível de pode ser sintetizado como o jornalista escreveu: “Coisa de bilhão de reais.” Imagina!

O quadro da hegemonização desse modelo de universidade corporativa tende a ser potencializado no campo nacional por um projeto silencioso que está sendo progressivamente implementado pelas entranhas do Ministério da Economia, com consequências imprevisíveis para o sistema de educação superior brasileiro, talvez, apagando quaisquer resquícios de uma universidade nos moldes da metáfora humboldtiana. 

Para nós, latino-americanos, as esperanças do “Manifesto de 21 de abril de 1918” ficaram basicamente na Declaração de Córdoba, produzida no bojo da Conferência Regional de Educação Superior, de junho de 2018. Evidente, que não nos cabe a pura resignação; a vida continua.

 Deixo algumas referências bibliográficas que servem de ponto de partida para a compreensão do ambiente em que foi gestado e prosperado universidade localizada na (pós)encruzilhada.** 

  

   --------------

* Nesse caso, os livros de Michael Gibbons, Helga Nowotny e outros (The New Production of Knowledg), e, de Henry Etzkowitz (The Triple Helix) são fundamentais, numa perspectiva de defesa do modelo de universidade corporativa.  

** (1) A educação superior na América Latina e os desafios do século XXI (ed Unicamp); (2) Educação superior nos Estados Unidos (ed. Unesp); (3) Globalização, sociedade do conhecimento e educação superior (ed Unb); (4) A universidade inovadora (ed bookman); (5) Neoliberalism and the global restructuring of knowledge and education. E o artigo Bac to the future: the ideia of a university revisited, de Darren O’Byrne.